domingo, 23 de setembro de 2007

Olhos de Menina

Sexta-feira... Não existe pior dia em toda a semana para se fazer hora-extra. Nunca antes me apeguei à superstições baratas, e não seria agora que o faria, mas começo a me indagar, e sinto certo pavor ao perceber isso, se não seria mal do dia em que vivia. O certo é que, independente das superstições, nessa sexta-feira treze, trabalho até as sete e dez da noite, duas horas e dez minutos além de meu expediente normal.

Lá fora, a noite parece refletir todo o meu humor: céu negro e a chuva fina, que parece fazer questão em me castigar enquanto subo a avenida desértica e escura, cabisbaixo, com medo de ser assaltado novamente. Segurança é uma das palavras que, com os anos de vivência nessa cidade imunda, aprendi a não respeitar.

Poucas pessoas a passar pela rua. Todas ridiculamente e exageradamente estranhas. Talvez seja o estado de apreensão em que me encontro. Talvez não... E ainda talvez, ridículo não fosse a palavra mais adequada para tal quadro. A palavra assustadoramente, sem sombra de dúvidas se encaixaria muito melhor à situação.

No ponto-de-ônibus, encontro um quadro muito semelhante. Talvez até um tanto quanto pior. Três, quem sabe cinco pessoas, que não se olham, e ficam visivelmente irritadas quando as fito. Começo a pensar se eu também não ficaria. Não encontro resposta para isso. Mas algo me diz que certamente, meu dia ainda poderia piorar...

Sete e meia. Meu ônibus, parecendo estar tão cansado quanto eu, finalmente chega ao ponto. Esboço um falso sorriso amarelo ao motorista ao entrar, e entrego um amassado passe para o cobrador. Passo a roleta com dificuldade, pensando se esta não poderia ser um pouco mais estreita, e me sento na primeira cadeira, a que tem à sua frente o vidro que separa a ala da frente, com a de trás do ônibus. Em síntese, a separação de idosos e pessoas ativas.

O tédio me consome! Não vejo a hora de pisar em casa e tomar um belo banho quente. Eu sei que merecia isso e que não estava muito longe de alcançá-lo. Mas nem mesmo o som do ônibus vazio partindo de meu ponto, rumando para o tão sonhado banho, me oferece algum motivo para sorrir.

Dois quarteirões, e o ônibus novamente para. Uma senhora idosa, e uma pequena garota loira, com os cabelos presos em duas trancinhas, dos olhos grandes e azuis, aparentando ter cinco, talvez quatro anos e que insistia em segurar firmemente a mão direita da mulher, se sentam numa cadeira entre o vidro e eu.

Meu pensamento está longe, estou absorto em meus problemas e preocupações, quando percebo a pequena, a me fitar com seus enormes olhos azuis. Retribuo o olhar, e o complemento com um leve sorriso de canto de boca. Posso ver sua alegria, quando me devolve um enorme sorriso. Ficamos sorrindo e olhando um para o outro, num breve espaço de tempo, que parece se transformar em uma eternidade.

Ela começa a desenhar nas janelas embaçadas do ônibus. Estrelas, corações e alguma escrita que não consigo entender, talvez fruto de sua imaginação. Faço o mesmo, e me pego desenhando em uma janela de ônibus. Ela fica feliz. Eu já me sentia feliz!

Mas ela não estava só, e nesse momento, a velha que a acompanhava, provavelmente sua avó, começa a me olhar de um modo reprovador. Será que ela poderia pensar que eu teria algum pensamento ruim para com a garota? Não poderia ser... Mas seu olhar continuaria a me reprovar por muito tempo.

Acabo me distraindo da pequena. Achava melhor não dar mais motivos para que a ignorância da velha pudesse criar novas sujeiras em sua mente. Mas não consigo ficar assim por muito tempo, pois vendo que eu deixava de lhe dar atenção, a garotinha começa a apagar seus desenhos. Ela tenta também apagar os meus, mas seus bracinhos não os alcançam. Eu os apago, vendo que era isso que seus olhos me pediam. Ela sorri novamente.

Foi então, que pela primeira vez, posso ouvir sua suave voz. Ela começa a cantar algo, que não consigo entender, por causa do barulho do motor. Em minha cadeira, também canto algo. Por mais que tenha cantado por um certo tempo, não posso me recordar da canção. As palavras vinham de minha alma, não de minha boca.

Já não é mais apenas a velha que começa a ter maus pensamentos sobre minhas intenções com a garota. Agora, o cobrador tenta começar a chamar sua atenção, para que ela esquecesse de mim, e fosse falar com ele. Gente ignorante. O mesmo quadro negro de outrora, volta a meus olhos. Por que eu não podia ficar simplesmente com aquele belo quadro multicolorido? Aquele arco-íris de alegria...

Mais uma vez, me distancio da pequena. Mas não por muito tempo, pois esta, começou a fazer caretas para mim. Encostando seu nariz no vidro, mostrando a língua. Meu coração gargalha, e começo também a fazer caretas para ela.

Estou segurando o cano que segura o vidro de separação, quando finalmente ela toca a minha mão. Um frio enorme me toma a espinha. Sinto o coração bater mais forte, e acaricio sua pequena mãozinha.

Vôo muito longe, enquanto acaricio a delicada e macia mão. Começo a pensar, como um pequeno gesto de uma garotinha, podia ter mudado um dia tão ruim. Fico realmente feliz. Ainda bem que a inocência das crianças, está acima da ignorância dos adultos. O que apenas os adultos fizeram crescer e arder, com pouco esforço, uma criança consegue desfazer.

Acordo de meus pensamentos, com os gritos da velha, que puxa a garota para longe de mim, chegando a machucar o braço da pequenina, que chora. Todos no ônibus me olham com ar de reprovação.

- Aonde já se viu, homem do teu tamanho se engraçar por uma menininha... Eu devia era chamar a polícia!

Eu apenas sorrio para a mulher. Não tenho palavras para rebater a sua ignorância. Mais uma vez um adulto consegue apenas destruir, com palavras, o que um simples olhar de uma criança consegue construir.

Fico feliz ao ver que o ônibus se aproxima de meu ponto. Puxo a corda e ouço o sinal para que o motorista pare. Ele para em meu ponto. Desço, ainda sob a chuva que se torna mais forte, e posso ver a garotinha acenando com a mão, me dando um tchau e me fitando com seus enormes olhos pueris.

Um sorriso toma o meu ser, enquanto aceno de volta para ela...

Colaba

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