domingo, 23 de setembro de 2007

Estranho Prazer

Ela sentiu aquele olhar intenso invadir seus sentidos. Os olhos de tempestade dele mergulhavam em sua alma. Sentia-se tremer como uma menininha. Respirou fundo, e ergueu o queixo levemente, em desafio. Ele era alto... Mas ela não se deixaria dominar, ou, sabia, estaria perdida.

Outrora sentira prazer nesse tipo de situação. Um olha penetrante, seco, que rasga a alma... Já fora prazeroso e engraçado, mas não nesse momento. Agora tinha medo. Receio talvez fosse a palavra ideal. Mas ela não seria dominada tão facilmente... Não dessa vez.

Seus olhos, negros. Piscou com graça os cílios longos. A boca, carnuda, vermelha, sensual, curvou-se em um sorriso provocante. Sentia-se dona de seus atos novamente. Sentia-se a Rainha daquela relação de dominação. E por um curto lapso de segundo ela, pequenina, na ponta dos pés, ergueu o queixo não em desafio - mas na ânsia de olhar mais profundamente naqueles olhos argênteos.

E sua reação o assustou... O passo atrás que dera, apenas mostrava isso a ela. Finalmente estava na situação que desejava. Dona de si. De presa à caçadora. Não entendia os homens. Frágeis, todos... E mesmo aquele que gelaria a espinha de qualquer uma, agora não passava de apenas mais um... Como todos...

“Homens...”

Deslizou a ponta do indicador sobre aqueles lábios, umedecendo os próprios com a ponta da língua. Ele havia jogado com o coração dela, desdenhado de seu afeto mais de uma vez. Mas agora ele estava ali, ao alcance de suas mãos, de seus lábios, de seu afeto. Mas este sentimento agora estava morto em seu peito.

Felizmente aquele jogador não sabia disso. E o blefe, é o que fere os de seu tipo... Acham que estão a ganhar, e, quando apostam todas as suas fichas, perdem o que tem, e o que não tem... Nesse caso, jogava-se com emoções, não sentimentos... Aproximou-se lentamente de sua boca, quase tocando seus lábios com os dele, e sussurrou algumas palavras...

- Você...

Ele tremeu levemente sob seu toque. Ele caiu. Caiu. Um abismo escuro, tépido. Ela sorriu de encontro aos lábios dele. E selou a perdição de ambos com um beijo lascivo.

Divertia-se com a cena. Um demônio de saias... Era isso o que era, a encarnação da própria Lilith... Mas não vingava-se, apenas divertia-se. Sabia que aquilo logo teria fim, e teve sua prova quando sentiu uma mordida em seu pescoço. Ele voltava com força, e com a fúria típica dos machos, em seus olhos.

A fisgada de dor encheu seus sentidos de um prazer avassalador. Aquele momento, efêmero como todos, logo passaria. Mas, por hora, ela só queria aproveitar. No dia seguinte se culparia, choraria, amaldiçoaria o mundo e a si mesma pela vingança que na verdade a feria mais que a ele. Não era uma vingança, mal admitia para si mesma. Ela o desejava como antes, mas dizer isso era condenar-se diante do mais cruel dos Juízes.

Consciência... Não precisava de seu Grilo Falante agora. O momento estava em suas mãos, e se entregou sem importar-se com o amanhã. Sempre fora assim, não havia porque agir diferente agora. Ele sempre a tivera quando quisera, e ela sempre desejou isso...

Os braços que a envolviam com força a puxavam contra aquele corpo - um corpo tão diferente do dela própria. O cheiro da pele dele inebriou totalmente seus sentidos, e ela sentiu-se ceder quando ele sussurrou qualquer coisa ao seu ouvido. O que teria sido mesmo? Não sabia dizer. Mas estava de volta a posição de caça. Uma presa indefesa que se deleitava em servir a seu caçador.

Daria seu sangue por ele, e sabia que ele o tomaria pra si. Almofadas? Uma poltrona? Não sabia nem onde estava mais. Espaço e Tempo agora apenas constavam em uma estranha teoria de um físico maluco. Chegava ser saborosa a dor por ter os cabelos puxados. Era assim que ele chegava mais facilmente àquele que parecia ser seu objeto mais precioso. Não eram seus lábios, nem outra parte de seu corpo... Era ao pescoço que ele insistentemente buscava...

Ela arqueou o corpo, oferecendo-se para a consumação da ansiedade dele. Adorava ser sua escrava. A fisgada de dor, mais intensa, e o veio vermelho, quente, a escorrer por sua pele, diziam tudo - ele gemeu de extâse, ela o prendeu entre suas pernas. Ela o odiava mais que tudo no mundo, odiava o modo como a fazia sentir. Odiava sentir prazer em ser subjugada por ele... um prazer insano, intenso.

Talvez isso fosse amor... Sim... Tantas mentes e tanto esforço para entender uma simples palavra, e ela estava ali, definida como o seu maior antônimo. Ela amava aquele ser por odiá-lo tanto. Um último suspiro, e ele consumava seu ato. Talvez ele pensasse que apenas ele sentia prazer com aquilo, ao ver como deixara suas roupas rasgadas e seu ser jogado sobre aquela cama... Sim, uma cama e não almofadas ou sofás... Enganava-se... Era ela quem sentia o maior prazer. Não havia dúvidas.

Sorriu para ele, e acariciou seu rosto odiado. O amor escorria de seu rosto para se transformar em escuridão. Os olhos negros dela reluziam o abismo do amor que sentia por aquele ser dominador, por seu Mestre. Ela sorriu, doce e entregue. Sussurrou palavras de amor eterno.

E como sempre ele virou-se e sumiu por aquela mesma porta, deixando-a deitada e estirada em sua cama, sem nem ao menos olhar para trás, ou perder alguns segundos para lhe dizer algumas palavras de conforto. Nem ao menos um cigarro.

Colaba e Lorien

Conto de Fadas

Por que tudo sempre fora tão escuro? As coisas não deveriam acontecer como elas deveriam acontecer? Talvez todos sempre a tenham enganado... Mas é difícil... É difícil aceitar que seu príncipe encantado talvez nunca chegue em seu corcel branco, ou ainda, que os pássaros não venham sempre cantar em sua janela ao amanhecer.

Espero pacientemente por esse dia... Será que acontecerá?? Mesmo assim não me canso de todas as manhãs olhar a mesma paisagem, o mesmo horizonte a espera de príncipe encantado...

Uma manhã... Como a vida pode mudar em apenas um dia? A quem a senhora quer enganar? Como se eu, seu Grilo Falante, não conhecesse todos os seus desejos... Todos os seus anseios... Todas as suas neuras... A solidão te assusta minha pequena, e nós sabemos disso...

Exatamanete... Solidão... Não vejo a hora dessa dor passar logo!!! Mas dói tanto... Quero o meu príncipe!!! Me pegar em teus braços e me levar pra onde realmente seja o meu futuro... Mas quem será tão nobre cavalheiro?... Fico apreensiva de não reconhecê-lo, de coração não corresponder... Ah!!!

Esperança... Uma bela palavra, mas um sentimento nefasto... Ter esperança nesse sentido, é sentir pena de si mesmo... É esperar pela colheita, sem ao menos ter plantado... É flertar com a incerteza, sem ao menos colocar os pés no chão da realidade... Às vezes te vejo insegura, minha pequena... Às vezes te vejo infantil... Não seria hora de deixar as bonecas de lado?

Não sei se estou pronta... Ao mesmo tempo que acho que tenho de seguir minha vida, não consigo parar de pensar nos anseios e certezas... No que eu poderei vir a perder... Como, simplesmente deixar pra trás tudo e tomar novos objetivos?
Creio que sozinha não saberei...


Felizmente isso sempre será assim. Caso contrário, eu nem existiria... Eu conheço certamente o seu maior medo... A Solidão... Sabes qual é o meu? Tenho medo do dia em que deixarei de controlar as suas cordas... Do dia em que aprenderá a andar por suas próprias pernas... Fico feliz ao notar que esse dia cada vez está mais distante... Talvez ele nem ao menos venha a acontecer... Vocês humanos são tão interessantes...

Confesso que me cansei dessa situação, porém não sei como dar esse primeiro passo... E com certeza um dia o farei! Mas essa é a questão... Como me desprender? Arrebentar laços tão fortes não é tão simples!!!

Nada nunca é simples... Principalmente quando não o queremos...

Realmente... Preciso tomar alguma atitude... Mas, não sei. Sinto-me com um peso enorme nas costas!!! Me ajude! Mostre-me os caminhos em que eu posso seguir!!! Clareie pelo menos ao redor...

Criança... Sabe qual é o seu maior defeito, entre todos eles? Você não consegue confiar em você mesma... Talvez um dia compreenda tudo o que é, todo o poder que tem em suas palavras, em suas ações... Acreditar em destino é louvável... Esperar por ele sem ao menos tentar fazer com que aconteça, é irritante...

Só os Deuses sabem o quanto queria ir além dessa murada... Conhecer novos campos e tomar novos ares... Te confesso que tenho muito medo. Medo esse que me assombra dia após dia, e do qual eu não consigo me livrar... AAHHHH!!!!!

Se vai chorar, chorará sozinha...

Cale-se!!! Agora percebo que você é essa sombra que me segura... Em vez de me confiar, limita minha coragem!!! Em vez de me ensinar, me critica... Estou decepcionada!!!

Talvez meus ensinamentos não tenham sido em vão então... Fico feliz... Rebele-se... Rebele-se contra mim, rebele-se contra seus desejos de menina, rebele-se contra a ilusão... Eu te amo minha pequena, e por isso quero que brigue contra todos os seus monstros. E se para isso, tiver que me destruir, eu iria feliz, pois teria a certeza de ter cumprido totalmente o meu papel... Não sou seu tutor, não sou sua ama... Nunca se esqueça disso...

Então o que és?... Por favor, não me esconda mais nada!!! É uma dor imensa essa sensação... Ah...Agora tudo faz sentido... sim.. ... O que queres de mim?... Porque estás comigo, sendo que me aprisionaste até o momento?... Vamos, responda!!

Esconder? Nunca faria isso... E como diz não saber quem sou? Eu sou você... Se eu fosse alguém, como se sentiria sozinha comigo? Nunca estranhou não me ver? Nunca estranhou eu ser apenas um pensamento? Talvez eu perca meu tempo mesmo aqui...

Chore pequena... Chore e com esse choro liberte-se de mim. Um choro que marca uma passagem. Eu deixo uma menina ao chão chorando, na certeza de que faço nascer uma mulher... Um dia será grata por esse dia. Infelizmente não se lembrará mais de mim... Quem nunca teve seu Grilo Falante?

Colaba e LadyMarien

O Lobo

Eu sou o lobo...

E por mais que possam ter arrancado as minhas presas e cortado as minhas garras, eu sou o lobo...

Pois um lobo não se faz por sua pele ou por seu sangue, mas sim por seus instintos, e eu sou o lobo...

Não queria se enganar... Cães podem ser domesticados, cães são leais, cães são submissos... Não espere que eu abane meu rabo para você, pois eu sou o lobo...

Lobos seguem seu instinto por sangue. Enquanto você os mantiver saciados eles podem estar ao seu lado, mas, qualquer nova presa os afastará de você. Tome cuidado, eu sou o lobo...

Meus olhos te ferirão e te usarei como a mais insignificante das presas que é. Desejo a sua carne e nada mais. Lembre-se, eu sou o lobo...

O lobo é o que sou...

Colaba

Cordas da Vida

Eu sempre procurei o algo a mais. Não que eu só me contentasse com o melhor. Não, longe disso. Talvez fosse apenas o instinto humano em busca de sobrevivência. Mas hoje, a luta que já foi por comida, território e poder, se transformou pela busca pela mulher mais bela, a melhor casa, o carro do ano, o cargo nas grandes corporações, as grandes corporações. É... O ser humano anda cada vez mais selvagem. Será? Talvez as mesmas coisas que nossos ancestrais buscavam, nós busquemos hoje. Talvez as intensidades e os nomes sejam diferentes. Talvez, e apenas talvez...

O certo é que todos – e me incluo infelizmente nesse todo – desejamos manipular. O que não percebemos, talvez apenas por não abrirmos nossos olhos, é que todos somos marionetes nesse grande jogo chamado vida. E por mais que estejamos manipulando várias marionetes – sim, pois desde nossos filhos e criados que fazem o que desejamos, à mulher que induzimos ao sexo simplesmente pelo prazer, de um modo ou de outro, com flores ou dinheiro, manipulamos – sempre teremos as nossas cordas nas mãos de outro alguém. Seria isso Deus? A vida é mesmo injusta...

E o grande manipulador, que desde sempre somente soube brincar conosco, deve andar a se divertir, ao lado de seus asseclas, com todas as marionetes em suas mãos. Todas descartáveis, diga-se de passagem, que quando atingem seus objetivos, são deixadas de lado ou postas à mofar. Sempre foi assim. Sempre...

Hoje entendo a insanidade, talvez por me aproximar tanto deste estado, e não sei ao certo se isso é bom ou ruim. O conhecimento sempre foi a maior busca do homem, à frente de todos os outros motivos, mesmo que não pareça. Mas o conhecimento fere. Antes eu não soubesse...

Colaba

A Longa Vereda

Mais um dia comum. Eu, cercado de outros iguais a mim, trilhando meu caminho por uma estrada de terra sem fim, sob um sol escaldante a me fustigar.

Passo por homens caídos... Sinto a cabeça pesada! Tiro meu elmo, e posso sentir meu suor. Não, não se trata apenas de suor. Tenho a boca invadida... O gosto férreo de meu sangue misturado ao meu suor me dá ânsia!

Até quando?

Chegamos à mais uma aldeia. A recepção das crianças é sempre a mesma... Correndo, sorrindo e brincando.

A mão na cabeça de uma, um sorriso falso para outra. Tenho que me mostrar forte agora. Não posso mostrar fraqueza. Não posso mostrar meus medos!

Até quando? Até... quando?

Colaba

Despedida

Despedidas nunca foram agradáveis para ele. Mas afinal, para alguém o é? Ele já nem podia mais responder a essa pergunta. Apenas podia afirmar que, em certos momentos, elas eram necessárias. E ele encontrava-se justamente em um destes raros e desagradáveis momentos.

Como diria para sua mãe, que iria para tão longe? Como lidaria com a reprovação de seu pai? Com que olhar encararia seu cachorro? Com que doces palavras enxugaria as lágrimas de seu grande amor?

Ele não podia... E sabia disso. Por mais que pudesse se esforçar, nunca diria tudo o que era necessário. As palavras lhe prenderiam a garganta, e o choro, lhe turvaria a visão.

Lembrou-se dos pequenos detalhes. De fazer sua cama, e tirar sua escova-de-dentes do armário do banheiro. Sua mãe não merecia ter que arrumar suas coisas depois que ele partisse.

E meio à suas pequenas coisas, encontrou muitas lembranças. Nunca poderia dizer como se sentiu bem, toda vez que sua mãe lhe dera um de seus beijos medicinais, ou ainda, quando seu pai, mesmo cansado, o acolhia em sua cama quando na presença de maus um de seus pesadelos. Não poderia expressar todo o contentamento pela companhia do pequeno animal, nos dias mais chuvosos de sua vida, muito menos, como se apaixonou com aquele primeiro sorriso.

Ele não podia dizer, mas podia escrever. E num pequeno pedaço amassado de papel, escreveu tudo o que desejava falar, e terminou num belo e grande ‘adeus’.

Ele já podia partir. Apertou mais uma vez então o nó em volta de seu pescoço, para finalmente jogar-se daquele banco.

Colaba

O Vôo do Urubu

Urubus voando ao meu redor. Parece que apenas esperam o momento em que minhas forças, já exauridas, finalmente acabem, e meu corpo, já desfalecido, toque o chão.

Por que me deixastes aqui?

Sinto em minha já cansada mão direita, o peso do grilhão que me colocaste. À um primeiro olhar, belo e brilhante. Porém, aos meus olhos, o fardo mais cruel de todos.

Por que me deixastes isso?

Fúria... Palavras me vêm à boca. Palavras sempre foram somente palavras. O sentimento ainda é maior do que todas elas. Não seria eu, em minha pequenez, que poderia expressá-los.

Por que me deixastes assim?

Já não sei se são os urubus que me esperam, ou se sou eu quem os espera. Entrego-me às lágrimas... Aos urubus... À morte... À você!

Por que me deixastes?

Colaba

Bons Tempos

Ela sempre esteve ao seu lado e ele sempre fora grato por isso. Ele sorri, e segura firmemente a sua mão.

- É querida, passamos bons momentos juntos...

Um beijo na testa da amada. Ele acaricia os cabelos agora grisalhos, e ao fitá-los, recorda-se dos dias em que eles eram negros como o carvão.

Ela olha para ele. Uma lágrima escorre por sua face, e a água escorrendo lhe remete à outras lembranças...

Ele lavando seu recém adquirido carro, no auge de seus trinta anos. Ela aparece, bela tal qual uma ninfa. Seus vinte e poucos anos lhe eram agradáveis, e certamente ela lhe daria belos filhos, seu maior sonho.

O dia parecia propício para isso, e ela transparecia fertilidade. Ele a via nua, sob aquele vestidinho florido que insistia em lhe marcar todas as curvas.

Ela se aproxima calmamente e lhe beija a boca. Parecia que vinha para lhe ajudar, já que pega a bucha, totalmente embebida de sabão, e se dirige ao carro.

Ledo engano. A pequena entorna todo o balde cheio de espuma em sua cabeça. Ela era uma moleca, e era isso o que mais ele amava nela. Ela lhe fazia sentir-se jovem.

Num impulso, ele aponta o esguicho d’água que segurava em direção à mulher. A água fria escorre por seu corpo e ela corre para se proteger.

Um grito, um caminhão, uma buzina...

Piiiiiiii!!!!!!!

- ENFERMEIRA!

Ele está de volta, de frente ao leito de sua mulher. Os aparelhos buzinam. Ele delicadamente fecha os olhos da doce amada. Sabe que ali morre uma grande parte dele. A mais bela de todas...

Colaba

Olhos de Menina

Sexta-feira... Não existe pior dia em toda a semana para se fazer hora-extra. Nunca antes me apeguei à superstições baratas, e não seria agora que o faria, mas começo a me indagar, e sinto certo pavor ao perceber isso, se não seria mal do dia em que vivia. O certo é que, independente das superstições, nessa sexta-feira treze, trabalho até as sete e dez da noite, duas horas e dez minutos além de meu expediente normal.

Lá fora, a noite parece refletir todo o meu humor: céu negro e a chuva fina, que parece fazer questão em me castigar enquanto subo a avenida desértica e escura, cabisbaixo, com medo de ser assaltado novamente. Segurança é uma das palavras que, com os anos de vivência nessa cidade imunda, aprendi a não respeitar.

Poucas pessoas a passar pela rua. Todas ridiculamente e exageradamente estranhas. Talvez seja o estado de apreensão em que me encontro. Talvez não... E ainda talvez, ridículo não fosse a palavra mais adequada para tal quadro. A palavra assustadoramente, sem sombra de dúvidas se encaixaria muito melhor à situação.

No ponto-de-ônibus, encontro um quadro muito semelhante. Talvez até um tanto quanto pior. Três, quem sabe cinco pessoas, que não se olham, e ficam visivelmente irritadas quando as fito. Começo a pensar se eu também não ficaria. Não encontro resposta para isso. Mas algo me diz que certamente, meu dia ainda poderia piorar...

Sete e meia. Meu ônibus, parecendo estar tão cansado quanto eu, finalmente chega ao ponto. Esboço um falso sorriso amarelo ao motorista ao entrar, e entrego um amassado passe para o cobrador. Passo a roleta com dificuldade, pensando se esta não poderia ser um pouco mais estreita, e me sento na primeira cadeira, a que tem à sua frente o vidro que separa a ala da frente, com a de trás do ônibus. Em síntese, a separação de idosos e pessoas ativas.

O tédio me consome! Não vejo a hora de pisar em casa e tomar um belo banho quente. Eu sei que merecia isso e que não estava muito longe de alcançá-lo. Mas nem mesmo o som do ônibus vazio partindo de meu ponto, rumando para o tão sonhado banho, me oferece algum motivo para sorrir.

Dois quarteirões, e o ônibus novamente para. Uma senhora idosa, e uma pequena garota loira, com os cabelos presos em duas trancinhas, dos olhos grandes e azuis, aparentando ter cinco, talvez quatro anos e que insistia em segurar firmemente a mão direita da mulher, se sentam numa cadeira entre o vidro e eu.

Meu pensamento está longe, estou absorto em meus problemas e preocupações, quando percebo a pequena, a me fitar com seus enormes olhos azuis. Retribuo o olhar, e o complemento com um leve sorriso de canto de boca. Posso ver sua alegria, quando me devolve um enorme sorriso. Ficamos sorrindo e olhando um para o outro, num breve espaço de tempo, que parece se transformar em uma eternidade.

Ela começa a desenhar nas janelas embaçadas do ônibus. Estrelas, corações e alguma escrita que não consigo entender, talvez fruto de sua imaginação. Faço o mesmo, e me pego desenhando em uma janela de ônibus. Ela fica feliz. Eu já me sentia feliz!

Mas ela não estava só, e nesse momento, a velha que a acompanhava, provavelmente sua avó, começa a me olhar de um modo reprovador. Será que ela poderia pensar que eu teria algum pensamento ruim para com a garota? Não poderia ser... Mas seu olhar continuaria a me reprovar por muito tempo.

Acabo me distraindo da pequena. Achava melhor não dar mais motivos para que a ignorância da velha pudesse criar novas sujeiras em sua mente. Mas não consigo ficar assim por muito tempo, pois vendo que eu deixava de lhe dar atenção, a garotinha começa a apagar seus desenhos. Ela tenta também apagar os meus, mas seus bracinhos não os alcançam. Eu os apago, vendo que era isso que seus olhos me pediam. Ela sorri novamente.

Foi então, que pela primeira vez, posso ouvir sua suave voz. Ela começa a cantar algo, que não consigo entender, por causa do barulho do motor. Em minha cadeira, também canto algo. Por mais que tenha cantado por um certo tempo, não posso me recordar da canção. As palavras vinham de minha alma, não de minha boca.

Já não é mais apenas a velha que começa a ter maus pensamentos sobre minhas intenções com a garota. Agora, o cobrador tenta começar a chamar sua atenção, para que ela esquecesse de mim, e fosse falar com ele. Gente ignorante. O mesmo quadro negro de outrora, volta a meus olhos. Por que eu não podia ficar simplesmente com aquele belo quadro multicolorido? Aquele arco-íris de alegria...

Mais uma vez, me distancio da pequena. Mas não por muito tempo, pois esta, começou a fazer caretas para mim. Encostando seu nariz no vidro, mostrando a língua. Meu coração gargalha, e começo também a fazer caretas para ela.

Estou segurando o cano que segura o vidro de separação, quando finalmente ela toca a minha mão. Um frio enorme me toma a espinha. Sinto o coração bater mais forte, e acaricio sua pequena mãozinha.

Vôo muito longe, enquanto acaricio a delicada e macia mão. Começo a pensar, como um pequeno gesto de uma garotinha, podia ter mudado um dia tão ruim. Fico realmente feliz. Ainda bem que a inocência das crianças, está acima da ignorância dos adultos. O que apenas os adultos fizeram crescer e arder, com pouco esforço, uma criança consegue desfazer.

Acordo de meus pensamentos, com os gritos da velha, que puxa a garota para longe de mim, chegando a machucar o braço da pequenina, que chora. Todos no ônibus me olham com ar de reprovação.

- Aonde já se viu, homem do teu tamanho se engraçar por uma menininha... Eu devia era chamar a polícia!

Eu apenas sorrio para a mulher. Não tenho palavras para rebater a sua ignorância. Mais uma vez um adulto consegue apenas destruir, com palavras, o que um simples olhar de uma criança consegue construir.

Fico feliz ao ver que o ônibus se aproxima de meu ponto. Puxo a corda e ouço o sinal para que o motorista pare. Ele para em meu ponto. Desço, ainda sob a chuva que se torna mais forte, e posso ver a garotinha acenando com a mão, me dando um tchau e me fitando com seus enormes olhos pueris.

Um sorriso toma o meu ser, enquanto aceno de volta para ela...

Colaba

Deixando um Pedaço de Vida

O rapaz na cadeira-de-rodas vendendo panos-de-prato, a senhora gorda que passa de mãos dadas com a neta, o menino engraxando os sapatos do doutor, o executivo falando ao celular enquanto vai com sua maleta, o velhinho e a velhinha que choram a se despedirem da filha que vai com o neto, e o garoto sentado escrevendo em um pedaço de papel amassado.

A mulher que passa de minissaia e os olhos a lhe seguir, um mundaréu de pessoas a ir e a vir, e o garoto sentado escrevendo em um pedaço de papel amassado.

Mais um ônibus chega. Pessoas descendo, o rapaz a pegar as malas, o motorista descontente a jogar sua cólera nas costas das pessoas que estão a embarcar. Mais um ônibus se vai, e o garoto sentado escrevendo em um pedaço de papel amassado.

O faxineiro a varrer, o guarda a rondar, e o garoto sentado a escrever em seu pedaço de papel amassado.

Mais um ônibus vem. Pessoas a passar, o rapaz das malas, o motorista confirmando os bilhetes, uma japonesa acendendo seu cigarro, o rapaz da cadeira-de-rodas com seus panos, o senhor vendendo algodão doce e um pedaço de papel amassado no chão.

E mais um ônibus se vai...

Colaba

O Jardim

Oh belo jardim...

Sua mulher cultivava o mais belo dentre todos os jardins. Um vistoso gramado que circundava a mais bela e rosada de todas as flores que já havia visto.

Seus traçados, suas formas. Planícies e encantos. Como adorava aquele gramado que tão minuciosamente sua mulher aparava.

Adorava perder-se nele e saborear o perfume que tão majestosa flor exalava.

Todos os dias, após o serviço, desfrutava do jardim da mulher, que sempre o fazia também, em sua presença ou não.

Até que um dia, ao voltar do serviço, descobriu que a mulher havia cortado o gramado, deixando-lhe apenas a solitária flor.

Oh dor... O jardim perdera o encanto para ele.

Mas, ao ver a tristeza da mulher, que sempre zelara do jardim por ele, e que agora mais uma vez apenas queria agradar-lhe, correu a apreciar a flor.

Mais valia um sorriso da mulher, do que o mais vivo dos jardins.

Colaba

Medo de Escuro

Quem acredita em monstros?

Quem teme aquilo que não pode ver? Enxerga olhos no escuro? Sente-se seguido quando só? Teme o que pode existir embaixo de sua cama? Grita ao abrir um guarda-roupas? Não anda só à noite?

É fácil entender porque apenas crianças e loucos acreditam em monstros...

Mas quem nunca teve medo de se apaixonar? As feridas de um amor não correspondido, ou que se acaba sem ter um fim, não podem ser comparadas com a dor de nenhuma das chagas humanas. Tememos o que não controlamos.

Quem nunca sofreu com a inveja? Basta notar a quantidade de simpatias contra o mau-olhado... Colocamos a culpa de todos os nossos fracassos, na má intenção de outros. Vemos olhos aonde não existem.

Quem nunca se sentiu perseguido? Por seus chefes, professores, pais... Nunca somos fracos. Nunca somos incapazes... Sofremos sim, com a perseguição.

Quem não teme a traição? Mesmo os casais mais perfeitos e unidos, um dia têm problemas com a tentação. Mesmo os sentimentos mais puros, um dia caem perante a mais suja das tentações... Nossas camas estão infestadas de amantes.

Quem nunca sofreu por não ter o que vestir naquela ocasião especial? Nunca estamos satisfeitos com o que temos. O muito é sempre pouco. Somos consumistas, e a falta de posses nos deixa histéricos.

Quem não teme a violência das cidades? Ninguém está seguro. O mal está por toda a parte. Somos vítimas de nossa própria ânsia por matéria, Estamos presos, não podemos mais caminhar em paz...

Quem acredita em monstros?

Colaba

A Blusa Roxa

Quando pensamos em nossas juventudes, muitos pensamentos nos vêem à mente. Paixões, ideais, sorrisos... Quando penso em minha juventude, vejo mais que isso. Vejo minha velha blusa de malha roxa, com seu inigualável gorro.

Isso mesmo, minha velha blusa roxa. Odiada pela minha mãe, e tão adorada por mim. Éramos inseparáveis. Lembro de poucos dias em minha vida em que deixei de usa-la.

Ela era o marco de minha criatividade. Com ela fui guru, monge, ninja, assassino, sábio, misterioso... Todos os personagens de uma mesma pessoa.

Agora sim posso lembrar das paixões, dos ideais, dos sorrisos...

É estranho abrir meu guarda-roupas, uma década e meia depois, e ver que ela ainda está lá. Talvez seja meu maior bem, a herança que passarei aos meus filhos. Talvez por isso a guarde por tanto tempo...

E mesmo com todos seus furos e rasgos, a visto uma última vez, na vã esperança de quem um dia você ainda possa voltar para ela...

Colaba