quarta-feira, 23 de abril de 2008

Emergência

É fácil identificar o passageiro de primeira viagem. É o que já entra no avião desconfiado. O cumprimento da aeromoça, na porta do avião, já é um desafio para a sua compreensão.
- Bom dia...
- Como assim?
Ele faz questão de sentar num banco do corredor, perto da porta. Para ser o primeiro a sair no caso de alguma coisa dar errado. Tem dificuldade com o cinto de segurança. Não consegue atá-lo. Confidencia para o passageiro ao seu lado:
- Não encontro o buraquinho. Não tem buraquinho?
Acaba esquecendo a fivela e dando um nó no cinto. Comenta, com um falso riso descontraído: “Até aqui, tudo bem.” O passageiro ao lado explica que o avião ainda esta parado, mas ele não ouve. A aeromoça vem lhe oferecer um jornal, mas ele recusa.
- Obrigado, não bebo.
Quando o avião começa a correr pela pista antes de levantar vôo, ele é aquele com os olhos arregalados e a expressão de Santa Mãe do Céu! no rosto. Com o avião no ar, dá uma espiadela que dará pela janela.
Mas o pior está por vir. De repente ele ouve uma misteriosa voz desencarnada. Olha para todos os lados para descobrir para descobrir de onde sai à voz.
“Senhores passageiros, sua atenção, por favor. A seguir, nosso pessoal de bordo fará uma demonstração de rotina do sistema de segurança deste aparelho. Há saída de emergência na frente, nos dois lados e atrás.”
Emergência? Que emergência? Quando eu comprei a passagem, ninguém falou nada em emergência. Olha, o meu é sem emergência.
Uma das aeromoças, de pé ao seu lado, tenta acalmá-lo.
- Isso é apenas uma rotina, cavalheiro.
- Odeio a rotina. Aposto que você diz isso para todos. Ai meu santo!
“No caso de despressurizacão da cabina, máscaras de oxigênio cairão automaticamente de seus compartimentos.”
- Que historia é essa? Que despressurizacão? Que cabina?
“Puxe a máscara em sua direção. Isso acionará o suprimento de oxigênio".
“Coloque a máscara sobre o rosto e respire normalmente.”
- Respirar normalmente? A cabina despressurizada, máscaras de oxigênio caindo sobre nossas cabeças – e ele quer que a gente respire normalmente?!
“Em caso de pouso forçado na água...”
- O que?!
“os assentos de suas cadeiras são flutuantes e podem ser levado para fora do aparelho e ...”
- Essa não! Bancos flutuantes, não! Tudo menos bancos flutuantes!
- Calma cavalheiro.
- Eu desisto! Parem este troço que eu vou descer. Onde é a cordinha? Parem!
- Cavalheiro, por favor. Fique calmo.
- Eu estou calmo. Calmíssimo. Você é que está nervosa e, não sei o por quê, está tentando arrancar as minhas mãos do pescoço deste cavalheiro aqui do lado. Que, aliás, também parece consternado e levemente azul.
- Calma! Isso. Pronto. Fique tranqüilo. Não vai acontecer nada.
- Só não quero mais falar em banco flutuante.
- Certo. Ninguém mais vai falar de banco flutuante.
Ele se vira para o passageiro ao lado, que tenta desesperadamente recuperar a respiração, e pede desculpas. Perdeu a cabeça.
- É que o banco flutuante foi demais. Imagine só. Todo mundo flutuando sentado, fazendo sala no meio do Oceano Atlântico!
A aeromoça diz que lhe vai trazer um calmante e ai mesmo é que ele dá um pulo:
- Calmante, por quê? O que é que está acontecendo? Vocês estão me escondendo alguma coisa!
Finalmente, a muito custo, conseguem acalmá – lo. Ele fica rígido na cadeira. Recusa tudo o que lhe é oferecido. Não quer almoço. Pergunta se pode receber a sua comida em dinheiro. Deixa cair a cabeça para traz e tenta dormir. Mas, a cada sacudida do avião, abre os olhos sobre a cabeça, de onde, a qualquer momento, pode pular uma máscara de oxigênio e mata – lo do coração.
De repente, outra voz. Desta vez é o comandante.
- Senhores passageiros, aqui fala o comandante Araújo. Neste momento, à nossa direita, podemos ver a cidade de...
Ele pula outra vez da cadeira e grita para a cabine do piloto:
- Olha para frente, Araújo! Olha para frente!

Luiz Fernando Veríssimo

terça-feira, 22 de abril de 2008

Sonhos...

Um dia vou ter um emprego bom.
Vou viajar muito.
Vou ser mais legal com as pessoas de uma forma natural.
Um dia vou tomar banho de chuva cantando e dançando.
Um dia vou conversar sério sobre a vida com amigos.
Um dia vou escrever um texto bom.
Vou jogar bola num estádio de futebol.
Um dia vou assistir um jogo da copa da mundo. Uma corrida da Fórmula 1.
Um dia vou comprar um carrinho pra mim.
Um dia vou contar histórias para meu filho e me fascinar com essas histórias.
Um dia vou ficar doente de tanto tomar sorvete.
Um dia eu descobrirei a receita da felicidade.
Um dia eu saio de casa sem rumo e volto depois com mil histórias pra contar.
Um dia eu visito a catedral de Notre Dame em Paris. Visito o Coliseu em Roma.
Um dia me rolo nas areias em frente as pirâmides do Egito.
Um dia eu entro com glamour na Acrópole grega. Arranco um pedaço da muralha da China e guardo pra mim. Faço careta para os moais na Ilha de Páscoa.
Um dia aposto corrida nas escadarias do Tibet.
Um dia eu ando de navio.
Um dia eu fico inteligente e passo horas explicando para os mais jovens com o maior prazer do mundo.
Um dia eu pulo de pára-quedas, mesmo tendo medo de altura.
Um dia eu faço mergulho, mesmo tendo medo do mar.
Um dia perco meus medos.
Um dia vou estudar magia e teologia.
Um dia eu guardarei segredos sobre o universo e sobre o homem.
Um dia eu guardarei os seus segredos pra mim, e mais ninguém saberá.
Um dia eu deixo as crianças rabiscarem as paredes da minha casa.
Um dia eu vou aprender a ser bom com as pessoas. Vou aprender artes marciais. Vou aprender a filosofia oriental.
Um dia vou comer sushi.
Um dia volto a ser criança.
Um dia aprendo a ver o lado bom das coisas.
Um dia troco de computador.
Um dia eu tiro o dia pra não fazer nada.
Um dia eu aprendo a fazer aviãozinho de papel, e outros origamis também.
Um dia vou entender que a paciência é uma virtude que não pode ser desprezada.
Um dia vou comprar uma mesa de sinuca e chamar os amigos pra jogar na minha casa.
Um dia paro de beber, e compreendo que não é o álcool que faz a gente feliz e que a felicidade está dentro de nós. Basta procurar com paciência.
Um dia compreenderei o sentido da vida, mesmo que ela não tenha nenhum sentido!
Um dia eu chego lá.


Podem me chamar de ingênuo com uma inocência incrível. Mas um dos sonhos que mais quero que se concretize é me casar com uma mulher que eu ame de verdade e que ela me ame com a mesma intensidade. Ter no máximo dois filhos e ser um pai exemplar. É muito?
Um dia eu chego lá.

Rafael Calheiros

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar seus olhos que são doces...
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres exausto...
No entanto a tua presença é qualquer coisa, como a luz e a vida...
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto...
E em minha voz, a tua voz...
Não te quero ter, pois em meu ser tudo estaria terminado...
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados...
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada...
Que ficou em minha carne como uma nódoa do passado...
Eu deixarei...Tu irás e encostarás tua face em outra face...
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada...
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu...
porque eu fui o grande íntimo da noite...
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa...
Porque os meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
E eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém, porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas,
serão a tua voz presente, tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinicius de Morais

terça-feira, 8 de abril de 2008

Amizade (O conto do Budha e o seu discípulo)

Um dia, um discípulo perguntou a Budha: “Mestre, o que é a Amizade?” Budha sorriu docemente e respondeu: “Nada mais do que uma bengala forte e segura”.

O discípulo, depois de muitas semanas de meditação, voltou à presença do Mestre e indagou: “Como se pode comparar a Amizade com uma simples bengala? Com um pedaço de pau?”

Budha levou o discípulo até a margem de um rio e mostrou-lhe a neblina baixa que impedia de enxergar o outro lado e falou: “Imagine que você tem de atravessar este rio e que a neblina não lhe permite ver além de uns poucos passos à sua frente. A trilha de pedras, que é o único caminho para o outro lado, é formada por rochas lisas, redondas e parcialmente cobertas pela água. É uma trilha muito perigosa... Uma queda, um escorregão, e não haverá como se salvar. O que é que você faz”?

Novamente o discípulo se recolheu para meditar sobre as palavras de seu Mestre e, depois de outras tantas semanas, voltou para dizer: “Eu faria uso de uma bengala, meu Mestre. Seria esse o sentido da Amizade?”

E Budha respondeu: “Sim. É esse o sentido da Amizade. Uma bengala, um apoio que será o seu auxílio para atravessar o Rio da Vida sem ter receio de escorregar em cada uma de suas etapas. A bengala é como a Amizade, firme, segura, eficiente, capaz de sustentar o seu peso num momento difícil, numa passagem que somente as suas pernas não seriam capazes de agüentar, mas com o apoio da bengala, você cria novas forças, você adquire uma nova energia e se torna capaz de vencer o obstáculo. E é por isso que a Amizade, como a bengala, tem de ser firme e forte. Ela precisa agüentar todo o seu peso, às vezes. E é também pelo mesmo motivo que a Amizade, como a bengala, deverá ser bem cuidada. Para que nunca se deteriore, para que não apodreça e se torne, de repente, frágil e quebradiça. Uma amizade é algo vivo, algo que necessita de cuidados para não morrer”.

O discípulo recolheu-se novamente por mais algumas semanas. Finalmente, ao tornar a aparecer diante do Mestre, falou: “Mestre, sendo a Amizade o ponto de apoio dos homens, quando todos se encostarem uns aos outros, todos se apoiarem mutuamente, então, nesse dia, não haverá mais nenhum que venha a cair nas águas do Rio da Vida... Não é assim?”

Budha não respondeu. Limitou-se a olhar para a frente, os olhos perdidos no infinito de suas meditações.

Talvez estivesse lamentando o fato de saber que isso jamais viria a acontecer.


Autor Desconhecido

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Bushido

Eu não tinha pais.
Eu dotei o céu e a terra como meus pais.
Eu não tinha casa.
Eu adotei estar consciente como minha casa.
Pra mim não existia vida e morte.
Eu adotei a respiração e a aspiração como vida e morte.
Eu não possuia meios.
Eu adotei a compreensão como meu meio.
Eu não possuia habilidades especiais.
Eu adotei a moral como minha habilidade especial.
Eu não possuia olhos.
Eu adotei ser rápido como a luz como meus olhos.
Eu não possuia ouvidos.
Eu adotei a sensibilidade como meus ouvidos
Eu não possuia membros.
Eu adotei a agilidade como meus membros.
Eu não possuia estratégias.
Eu adotei não desvanecer de pensamento como minha estratégia.
Eu não possuia projetos.
Eu adotei prever oportunidades como meu projeto.
Eu não possuia princípios.
Eu adotei me adaptar às situações como meu princípio.
Eu não possuia amigos.
Eu adotei meu coração como meu amigo.
Eu não possuia talentos.
Eu adotei ser persistente como meu talento.
Eu não possuia inimigos.
Eu adotei a imprudência como minha inimiga.
Pra mim não existia milagre.
Eu adotei levar a vida corretamente como milagre.
Eu não possuia corpo.
Eu adotei a paciência como meu corpo.
Eu não possuia armadura.
Eu adotei a compaixão e a solidão como minha armadura.
Eu não era iluminado.
Eu adotei a determinação como minha iluminação.
Eu não possuia espada.
Eu adotei a ausência de ego como minha espada.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

O Buraco

"Dentro da casa tem um buraco, tem um buraco dentro da casa. O buraco se move da sala pro quarto, do quarto pro outro quarto, daí pra cozinha, de lá pro banheiro; às vezes cresce tanto que derruba as paredes e tudo vira um buracão só, que de tão fundo, fica frio. Aí eu encontro o parapeito do buraco, e me apoio no que não é buraco, é parapeito, e fujo. Vou pra rua.

Bebo, faço merda, grito, subo na mesa, fumo, cheiro, fodo com um com dois com três, faço suruba, lounge, jogo cerveja na cara dos outros, me esfrego no chão, bato de carro, apanho, cuspo, chupo uma buceta, chupo um pau, chupo balinhas. Volto e capoto.

Acordo e o buraco passou. Minha memória lacunar traz fragmentos de frases, congela instantes ou cenas inteiras da noite que dura mais que uma jornada de trabalho. Aí vem o trabalho propriamente dito e a sensação de que tenho vivido, produzo e me divirto, tudo em excesso, e tenho o que colocar no buraco, caso ele apareça.

Ao passo que o dia caminha, a luz cai e parece que ao cair da luz caímos nós também. Ops, eis novamente o buraco, e sua gargalhada muda, sarcástica:

— Achou que podia fugir, Baby?

Encaro o buraco. Não consigo encarar o buraco. Me lembra o medo do escuro, o medo do tigre que habitava as árvores retorcidas da estrada de Búzios, a Cuca, o Lobo Mau, o Bicho Papão. O buraco é nóia de gente grande.

Um amigo adepto das falhas subterrâneas, rei dos escombros, manipulador de psicotrópicos, me diz:

— Você não pára, né? Vive a mil.

Digo que sim só pra parecer que o meu buraco é menor, quase imperceptível, que eu sou bem resolvida, analisada, bacana, ativa, diferente dele, que pára, no buraco, e fica, na lama do buraco. Finjo que o meu cotidiano é mais alegre, que eu sou exuberante e feliz. Que eu conjugo bem o verbo viver.

Ainda na superfície ou quem sabe, de volta a ela, olho ao redor. E vejo que meus amigos todos também têm os seus super emptys, o buraco batizado na gramática da Lu Pessanha. E que muita gente fica como eu, vestindo peruca pra fingir que é outra pessoa e dançar nos bailes de carnaval sem o que o buraco te reconheça, lá, no meio da pista.

O problema é que cada vez que chove e ninguém me resgata do buraco, sem balada, sem saída, cada vez que sou obrigada a ficar aqui presa, percebo uma equação: quanto mais eu fujo do buraco, maior ele fica e, menores se tornam os sinais de que, de repente, ele poderá aparecer.

Agora ele me pega desprevenida, de assalto, a qualquer hora do dia e da noite. No meio da rua, numa festa, no bar, no trânsito, em casa. Grande, profundo, preciso de um mutirão de gente pra me tirar de lá. Guindaste, corpo de bombeiro, defesa civil? É pouco. Eu saio, ele se vai. Mas volta."

Antonia Pellegrino

Ismália - Alphonsus de Guimaraens

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar

Cada dia Melhor...

Algumas vezes acordo e, a vida não faz sentido,

Em outras ao me deitar é que o sentido desaparece e me pergunto porque levantar no dia que segue.

É nesse momento que avalio tudo que fiz, relembro cada minuto do meu dia em busca de respostas para tal pergunta,

E às vezes até encontro, simples como saber da necessidade de água, eu preciso fazer melhor.

Gabriela Costa