quarta-feira, 2 de abril de 2008

O Buraco

"Dentro da casa tem um buraco, tem um buraco dentro da casa. O buraco se move da sala pro quarto, do quarto pro outro quarto, daí pra cozinha, de lá pro banheiro; às vezes cresce tanto que derruba as paredes e tudo vira um buracão só, que de tão fundo, fica frio. Aí eu encontro o parapeito do buraco, e me apoio no que não é buraco, é parapeito, e fujo. Vou pra rua.

Bebo, faço merda, grito, subo na mesa, fumo, cheiro, fodo com um com dois com três, faço suruba, lounge, jogo cerveja na cara dos outros, me esfrego no chão, bato de carro, apanho, cuspo, chupo uma buceta, chupo um pau, chupo balinhas. Volto e capoto.

Acordo e o buraco passou. Minha memória lacunar traz fragmentos de frases, congela instantes ou cenas inteiras da noite que dura mais que uma jornada de trabalho. Aí vem o trabalho propriamente dito e a sensação de que tenho vivido, produzo e me divirto, tudo em excesso, e tenho o que colocar no buraco, caso ele apareça.

Ao passo que o dia caminha, a luz cai e parece que ao cair da luz caímos nós também. Ops, eis novamente o buraco, e sua gargalhada muda, sarcástica:

— Achou que podia fugir, Baby?

Encaro o buraco. Não consigo encarar o buraco. Me lembra o medo do escuro, o medo do tigre que habitava as árvores retorcidas da estrada de Búzios, a Cuca, o Lobo Mau, o Bicho Papão. O buraco é nóia de gente grande.

Um amigo adepto das falhas subterrâneas, rei dos escombros, manipulador de psicotrópicos, me diz:

— Você não pára, né? Vive a mil.

Digo que sim só pra parecer que o meu buraco é menor, quase imperceptível, que eu sou bem resolvida, analisada, bacana, ativa, diferente dele, que pára, no buraco, e fica, na lama do buraco. Finjo que o meu cotidiano é mais alegre, que eu sou exuberante e feliz. Que eu conjugo bem o verbo viver.

Ainda na superfície ou quem sabe, de volta a ela, olho ao redor. E vejo que meus amigos todos também têm os seus super emptys, o buraco batizado na gramática da Lu Pessanha. E que muita gente fica como eu, vestindo peruca pra fingir que é outra pessoa e dançar nos bailes de carnaval sem o que o buraco te reconheça, lá, no meio da pista.

O problema é que cada vez que chove e ninguém me resgata do buraco, sem balada, sem saída, cada vez que sou obrigada a ficar aqui presa, percebo uma equação: quanto mais eu fujo do buraco, maior ele fica e, menores se tornam os sinais de que, de repente, ele poderá aparecer.

Agora ele me pega desprevenida, de assalto, a qualquer hora do dia e da noite. No meio da rua, numa festa, no bar, no trânsito, em casa. Grande, profundo, preciso de um mutirão de gente pra me tirar de lá. Guindaste, corpo de bombeiro, defesa civil? É pouco. Eu saio, ele se vai. Mas volta."

Antonia Pellegrino

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