quarta-feira, 6 de maio de 2009

"O Amor é Importante. Porra"

(E Produz Livros Lindos)

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa


Nunca fui dado a escrever ensaioso que requer razão, sensibilidade, experiência e paciência, atributos que me são raros. Me considero ainda uma experiência inconclusa e ensaio, isso sim. Mas não vim aqui para falar de crises de um senhorzinho, mas para falar do amor dando voz a uma visceral pichação que ronda São Paulo nas últimas semanas e que sentencia: "O amor é importante. Porra".

Dando vez a esse pensamento eu junto a pichação ao poema de Álvaro de Campos para dizer que o amor é importante e que nem todas as cartas de amor são ridículas e mesmo que nelas estejam embutidas tantas nuances ridículas podem ser uma explosão, um clarão no meio da noite, algo que nos ajusta nos prumos ou nos tira dele de uma vez. Afinal é assim que me sinto após ler talvez o que eu considere a mais linda carta de amor que um homem escreveu à sua mulher, o belíssimo, o pungente, o comovente livro de André Gorz chamado "Carta a D. História de um amor" que ele dedicou a Dorine, a mulher com quem viveu quase 60 anos. Após ler esse livro sinto que sou um homem de merda, repleto de egoísmos e crédulo em falácias, alguém que como muitos não sabe dividir sequer um capítulo inteiro dessa aventura chamada vida com o perdão do lugar-comum para lá de infame. Indigno de receber o amor de qualquer mulher porque jamais conseguiria como ele repartir sequer uma pequena fração do que ele deu pra viver a dois o que ele poderia (teria conseguido?) vivenciar sozinho. Judeu austríaco, nascido em Viena, Gorz - cujo nome verdadeiro era Gerhard Gorz - fugiu do nazismo para a Suíça e, depois, foi para a França onde se tornou um jornalista e pensador político influente nos anos 1960. Seguidor de Sartre, combinou existencialismo com marxismo, fundou e militou no maoísmo e foi um dos grandes inspiradores dos estudantes que se revoltaram no maio de 68 parisiense. Depois migrou para a questão ecológica nos anos 1970 e repensou suas bases de ação política. Sua obra influenciou muita gente de gerações anteriores à minha aqui no Brasil onde ele é ainda pouco conhecido, com poucos livros publicados como "Metamorfoses do Trabalho" e "Misérias do presente, riqueza do possível". Sua história de intelectual e escritor é apenas um fugaz pano de fundo em "Carta a D.", pois ele prefere falar da sua longa vida ao lado de Dorine: do momento em que se conheceram - para ele uma paixão a primeira vista - aos tempos de pouco dinheiro até períodos de tranquilidade financeira e emocional quando doavam o que tinham em excesso. A descoberta de um erro médico provocou em Dorine uma doença progressiva que lhe limitava os movimentos e trazia dores horríveis. Gorz então se retira do mundo intelectual para cuidar dela. Se exilam numa casa de campo na França, onde ele se redime das muitas noites que a deixou de lado para ler e escrever e passa praticamente a viver pra cuidar dela. Ele coloca o amor em primeiro lugar e penso comigo que deve se amar mesmo uma mulher que como Dorine disse a ele, um escritor: "Amar o escritor é amar que ele escreva". Ou seja, se ela o chamava pra se deitar é apenas pra provar que o queria ao seu lado, aquecendo seu corpo nas noites de frio. Mas sabia que o chamado da escrita era maior, mais forte, mais urgente como foi o ato de amor extremo que ambos cometeram em setembro de 2007 quando se suicidaram com uma injeção letal pois ele diz quase ao final de "Carta a D.": "Nós desejaríamos não sobreviver um à morte do outro". Lendo o livro, por incrível que pareça, a genta acaba achando que o desfecho da vida deles não é tão trágico como parece.Um amor como o deles era feito de dois mesmo. Sozinho eles não sobreviveriam. Desde ontem a noite quando acabei de ler esse livro eu concordo mais do que nunca que "O amor é importante. Porra". E que nem todas as cartas de amor são ridículas. Muitas delas podem ser uma catarse, uma revelação, uma certeza de que após a leitura delas nada será como antes. O livro é bonito demais e para quem duvida começa assim:
"Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável.
Já faz cinquenta anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher."

[Post Retirado do Blog do Ricardo Soares: http://todoprosa.blogspot.com/2009/05/o-amor-e-importante-porra-e-produz.html]

2 comentários:

Ana Aitak disse...

Fazia tempo não lia algo tão bonito, um texto maravilhoso esse do especialmente quando ele se auto avalia em relação a história de amor que vai contar... Parabéns pela escolha, emocionante.

Ana Aitak disse...

atropelei as palavras, quis dizer: esse do Ricardo Soares e nao esse do especialmente rs