segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Conto de Natal

Quando eu era pequeno e jogava bola no colégio, sempre existia um muro.

Alto e com um cachorro brabo do outro lado.

E a bola, invariavelmente caía do outro lado. No melhor do jogo.

Azar.

O cachorro tinha um dono. Bernardo. Torcedor do Sport. A gente sabia pela imensa bandeira rubro-negra na janela do casarão.

E Bernardo não devolvia a bola, nunca.

A gente também nunca viu o Bernardo. Ele nunca dava as caras. Rico e orgulhoso.

O jogo parava e a gente tinha de esperar até alguém conseguir uma outra bola.

Porque bola era luxo. Se ganhava no aniversário. Por vezes no Natal. E só.

Mas sempre aparecia alguma bola dias depois. Vinda não sei de onde. Quem sabe de outros muros?

O jogo recomeçava. Todo mundo morrendo de medo de chutar mais forte.

Até que dias depois, pimba! A bola era chutada por algum perna-de-pau e ia parar no quintal de Bernardo.

O cachorro gritava. E todo mundo, com medo, ficava esperando o futuro.

Mesmo assim, a infância era feliz. Tinha bola de gude, que nunca caía na casa de Bernardo.

Tinha pipa. Tinha polícia e ladrão. Tinha Fratelli Vita.

Os anos se passaram e o mundo mudou.

Mas sempre que a velha turma se encontrava, lembrava das bolas e do muro. Do cachorro. De Bernardo.

Foi então que ano passado, tive uma surpresa.

Fui visitar o velho colégio. Colégio que vai deixar de ser colégio. Vai virar shopping center.

Uma das irmãs de caridade me reconheceu. Sempre passo por lá no Natal. Estava triste com o fim da escola.

De repente, comentou:

- O antigo casarão também vai virar shopping center! Vão derruba-lo depois do Natal.

Pensei em Bernardo. Na certa iria lucrar uma barbaridade com a venda do imóvel.

Antes que eu pudesse completar meu raciocínio, a irmã apontou um homem sentado no jardim:

- Lembra dele? Era o menino que morava no casarão.

Lá estava Bernardo. Olhando para o jardim, o campinho de terra, a velha quadra de basquete.

Bernardo estava sentado em uma cadeira de rodas.

Não pude deixar de caminhar até ele. Apresentei-me. Eu era o velho menino que chutava as bolas para seu quintal.

Surpreso, Bernardo olhou para mim. Lembrava das bolas.

Perguntei pelo cachorro. Ele disse que Manga, esse o nome do cachorro, havia morrido há muito tempo.

Sorrindo, Bernardo me contou que lembrava das bolas que iam cair no seu quintal.

De como ele sofria ouvindo nosso gritos de gol. Ele que não podia jogar.

Manga ficava muito zangado quando a gente jogava. Ele sofria vendo o seu dono sofrendo. Por isso gritava tanto.

Sua mãe nunca devolvia as bolas. Imaginava que aquele barulho trazia sofrimento ao filho.

Fiquei mudo.

Até que Bernardo, percebendo meu silêncio, murmurou:

- Na verdade eu gostava quando tinha jogo. Você não imagina nas férias, quando o silêncio era completo. E naquela época nem o Sport me dava alegria...

Verdade. Foram os anos do Hexa do Náutico. Do Penta do Santa Cruz.

Despedi-me. Deixei meu telefone com ele. Saí pensativo pelas ruas do Recife.

Eu pensava nas bolas e nos muros. Nas distâncias que separam quintais.

Algo em mim nunca mais foi o mesmo.

Hoje, quando o Náutico perde. Quando o Sport vence. Lembro sempre de Bernardo e de outros meninos como ele.

E agradeço a vida e a Deus.

Deus que sabiamente fez o dia e a noite.

A vitória e a derrota.

Para que o sorriso e a lágrima jogassem bola nos dois lados do muro.

Roberto Vieira

Nenhum comentário: